quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cidade Paraíso

-“Eu posso salvá-lo”, era o que eu sempre dizia p’ra ela.

- E agora ela foi embora?

Respirei fundo.

- É...

Alice havia ido embora, depois de um ano de nos conhecermos, junto de seu irmão mais novo. Eu e meu amigo David estávamos debruçados na janela do prédio abandonado olhando para o cemitério sem nome jogando conversa fora. Meu celular tocou e eu não dei importância:

- Não vai atender?

Ignorei ambos celular e David e mantive meu olhar na lua cheia. Depois de mais um suspiro:

- A mulher realmente me fazia lembrar algo, sabe? Uma sensação... Uma sensação que eu não sentia desde antes do Abraço.

- Você já está bem grandinho p’ra isso, já faz quase meio século que você não vê a luz do sol e ainda inventa de se apegar a algo mortal, ainda mais uma mulher. Pare de beber sangue de viciados. Até porque, pelo que eu saiba, essa mulher era cigana e se o Príncipe Vid...

- Que se dane o Príncipe! – eu o interrompi.

Mais um instante de silêncio. Meu celular voltou a tocar. Ignorei novamente. Quando o silêncio voltou, eu continuei:

- O Jazz Fest vai ser uma merda sem ela.

- Foi quando vocês se conheceram, né?

- É...

- O que o irmão dela tem mesmo?

- Câncer... Eu sempre dizia: “eu posso salvá-lo”, mas nunca pude explicar como e ela nunca pode entender... Até...

- Até ela descobrir que você chupa sangue pra sobreviver e ir embora.

...

- É...

David se virou em minha direção:

- Foi melhor assim, você sabe que a Família nunca iria aceitar que essa guria ficasse na cidade. Ela vai estar mais segura longe.

Minha expressão ficou mais grave e séria:

- Vou sentir falta do sangue dela.

- Algo além do sangue?

- Nada que eu vá lembrar daqui a alguns anos. Mas o sangue vai demorar mais p’ra esquecer.

O celular tocou de novo. Ignorei.

- Atende esse lixo logo.

- Não.

David balançou a cabeça negativamente, mas não deu bola. Logo o celular parou de tocar.

- Eu podia salvar o irmão dela... Tsc.

David me encarou por um instante:

- Vocês tinham até uma música, né? Que bonitinho – ele ironizou.

- Hehe, é... Ela sempre repetia o nosso trecho favorito: “A batida não é ruim, mas a letra está toda errada”, engraçado, não?

- Decadente – ele respondeu com secura.

Voltamos ao silêncio até que o celular de David tocou. Ele atendeu.

- Alô... Fala, Alonso... Que? Espera ai... Edgar, quando que a garota saiu da cidade?

- Deve estar na estrada nesse momento, por quê?

- Deve estar na estrada... Espera... Edgar, ela está indo de ônibus, de moto, de...?

- Ela deve ter roubado um carro, por que, droga?

- Deve ter roubado um carro... O que? ... Sério? ... Droga!

Ele desligou o celular e me olhou como se tivesse visto um fantasma.

- O Alonso ‘tá no Elísio.

- E daí?

- Ele ouviu uma conversa que envolvia você.

- Como é que é?

- Ele suspeita que os capangas do Savoy estejam atrás da sua garota.

- O que?!

- É! Parece que ele soube do seu caso com ela e quer raptá-la, não temos tempo p’ra discussão, você tem que achá-la!

- Merda!

Corri para pegar minha moto, enquanto David ficou no prédio, mexendo no celular. Em questão de segundos já estava ligando a chave e apertando o acelerador. Estava chegando na estrada mais próxima quando David me ligou de novo.

- Edgar, eu falei com meus contatos. Um carro azul de placa MHI-2272 foi roubado hoje, deve ter sido sua namorada. Os capangas de Savoy foram vistos se dirigindo p’ra estrada a caminho de Houma, acelere antes que eles a encontrem.

- Te devo essa.

Desliguei e apertei os aceleradores.

Em menos de meia hora já estava na estrada. Meu cérebro se tornava, aos poucos, nebuloso. Uma fera não é boa em proteger alguém, mas é excelente em caçar. Os pensamentos se tornaram rasos. A fera abanou a cauda.

Não sei quanto tempo demorou, mas logo eu via os “baba-ovos” do Savoy – meia dúzia - na minha frente e, mais a frente, o carro azul. Os prédios já haviam ficado para trás e nenhuma autoridade poderia aparecer num raio de quilômetros. Era matar ou morrer.

Permiti que meu sangue fervesse aguçando meus sentidos. Saquei minha colt e dei o primeiro tiro: Em cheio no pneu traseiro de um dos capangas. A moto cambaleou sem controle, esbarrou em outra e os dois capangas capotaram se embaralhando e rodopiando pela estrada, ficando para trás. Sorri.

Logo que os quatro restantes perceberam minha presença sacaram armas e se prepararam para atirar. Acelerei o máximo que pude, fiz meu sangue ferver novamente, fazendo meus músculos e minha pele se enrijecerem, me aproximei e passei por entre dois dos motoqueiros. Os capangas foram tão burros que tentaram atirar em mim no meio da manobra e atingiram um ao outro, como eu havia planejado. Mais dois perderam o controle de suas motos e rolaram pela estrada. Neófitos me divertem.

Diminui a velocidade para ganhar distância do último motoqueiro na minha frente. Ele disparou duas vezes em minha direção, mas errou de longe. Eu mirei bem nas costas do desgraçado, não sou do tipo que desperdiço munição. Cerrei meus olhos, cessei a respiração, preparei o dedo no gatilho, mas ele disparou antes, e não mirou em mim. Ele atirou no carro.

Não pude acreditar no que meus olhos viram. O maldito disparou seguidamente no carro, acertando nos pneus, nos vidros, na lataria. O carro perdeu o controle tentando frear. Senti a besta dentro de mim se arrepiar e mostrar as presas. Repeti o gesto do capanga e apertei o gatilho repetidamente, acertando ambos moto e piloto sem contar quantas vezes. Ele caiu sobre o guidão e se deixou cair da moto, já morto.

Freei bruscamente, largando meu veículo na estrada sem me importar com mais nada e corri em direção ao carro. Não dava para ver por dentro por causa dos vidros da janela completamente rachados. Fui abrir a porta e senti uma perfuração quente em meu ombro.

Olhei para trás e vi um capanga com a arma apontada. O maldito deve ter usado alguma bruxaria para ficar invisível e me fazer esquecê-lo. Logo que nos encaramos, ele apertou o gatilho mais vezes, mas eu me joguei para o lado sendo atingido uma única vez e descarreguei o que sobrava de munição da colt em cima do desgraçado. Eu cai no chão com os olhos bem abertos e a arma ainda apontada para o desgraçado. Ele caiu no chão com o corpo mole e esburacado. Me levantei, fui até o corpo imóvel e enfiei meu calcanhar na garganta do capanga, garantindo que ele não levantaria mais.

Sem perder tempo voltei para o carro e abri a porta.

- Vitor! Vitor! Fique acordado! Olha p’ra mim! Vitor!

O irmão dela havia sido baleado.

- Eu levo ele p’ro hospital! Você pega a moto do morto e me segue!

O rosto dela estava coberto de lágrimas. Peguei o rapaz nos meus braços, subi na moto e com a velocidade que cheguei na estrada, voltei para Nova Orleans.

Dane-se a Família, dane-se o Príncipe, dane-se Savoy, o garoto não podia morrer.

Fui o mais rápido possível para o hospital mais próximo da periferia e entreguei o garoto para os médicos. Alice ficou chorando horas no meu ombro.

Liguei para David e Alonso avisando de tudo que ocorrera e pedi para que eles vigiassem minhas costas naquela madrugada.

Depois de duas horas no hospital o médico falou com Alice. O estado do garoto era grave e era quase certo de que ele iria morrer:

- Por quê? – ela me perguntou em meio aos soluços.

- É difícil não ter inimigos na Família... Um dos meus resolveu pegar você.

- A gente tinha conseguido uma vaga p’ro tratamento dele em Houma, ele ia ser curado.

Quando nos tornamos vampiros, esquecemos de muitos sentimentos humanos. Mas o ódio a gente não esquece nunca. Eu fiquei olhando o garoto na cama da UTI, cheio de curativos, respirando por aparelhos. Quase ninguém nesse mundo é inocente, mas aquele garoto ainda era e a vida dele estava escorrendo pelo ralo na minha frente. Eu não tinha certeza do que o Savoy queria, mas o circo tava prestes a pegar fogo e eu tinha que estar preparado. Não era mais questão de sobrevivência, eu ia ter que atacar e estava bem decidido disso. Em meio aos meus pensamentos, eu ouvi a voz de Alice:

- Edgar...

Eu olhei para Alice. Os olhos castanhos estavam completamente vermelhos e ela ainda não havia parado de chorar. Ela segurou os soluços por um instante enquanto me encarava, controlou a respiração e ficou em silêncio me olhando, mas com algo na ponta da língua para falar.

Ela parecia ter certeza de algo, mas ainda assim com medo. Até uma semana atrás, ela não acreditava em vampiros e agora o irmão dela estava à beira da morte por causa de um de nós. Seus lábios se desgrudaram, ela respirou mais uma vez e disse a frase decisiva que iria, sem eu saber, virar o tabuleiro entre eu e Savoy:

- Salve-o.

A Família podia ser ingrata, mas sempre aumentava de forma divertida.