sábado, 11 de fevereiro de 2012

Novo Blog

Senhoras e senhores, venho por meio deste anunciar que este blog se mudou para um novo endereço:

http://entrevirtudesevicios.blogspot.com/

A proposta continua a mesma, mas, ampliada: além de contos, teremos crônicas, poesias, divagações e tudo que me der na telha.

Espero que gostem!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Natal na Barca

O texto à seguir é um "reconto" de "Natal na Barca", de Lygia Fagunde Telles.
Quem estiver interessado em ler o original, segue o link: http://www.releituras.com/lftelles_natal.asp

Não quero lembrar aqui porque me encontrava naquela barca, mas devo. Só sei que ao redor, tudo era silêncio e treva - e eu me sentia bem naquela solidão. Tudo como de costume. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros – eu não conto. Uma lanterna os iluminava com sua luz vacilante, um velho, uma mulher com uma criança de colo e uma moça com ar de esnobe. E eu tinha um serviço a fazer.
O velho se encontrava embriagado, conversando com o vento, em estado deplorável. Vestia um casaco velho e encardido, tinha uma barba mal cuidada e parecia ser cego de um olho. No centro, a mulher apertava a criança embrulhada num pano cinzento. Aparentava menos de trinta anos, talvez vinte e cinco, pálida como um anjo, olhos verdes e brilhantes, como pérolas, porém, sombria, graças ao longo manto negro que lhe cobria a cabeça. O filho ainda estava para completar um ano e começava a criar feições mais elaboradas. Os cabelos ralos e negros, boca miúda e pele branca, como a mãe. Os olhos castanhos e as sobrancelhas constantemente franzidas lembravam, cada vez mais, ao pai. A moça esnobe era quem parecia melhor de vida daquele grupo, entretanto, também parecia a mais insatisfeita consigo mesma. Vestia um blazer vermelho, usava cabelos acima dos ombros, loiros, e parecia se esforçar para ignorar o restante da barca.
Sentei ao lado da mulher com a criança e fiquei a observá-la. Ela estava aflita. Não tinha como não estar, pois seu filho estava doente. Mal havia chegado a esse mundo. Tão pequeno e tão frágil. A mãe mantinha-se firme, apesar de tudo. Realmente, uma pessoa forte. Via seu filho definhar e mantinha a serenidade. Sei que ela chorou na noite anterior, mães sempre choram – é quase um anúncio. O filho me olhou. Às vezes, crianças e idosos nos enxergam, pois estão próximos da passagem. Não sei se o filho sabe por que estou aqui, mas ele não pareceu se incomodar. Ao invés disso, se aconchegou no colo da mãe e cochilou. Todos acham que dormindo é melhor. Talvez seja.
As duas mulheres começaram a conversar. Eu observei. Devo confessar que os mortais me fascinam. Não é nenhum sadismo de estudar as sensações de pessoas que estão prestes a perder um filho, de forma alguma. É realmente curiosidade. Elas começaram com uma conversa vazia, sobre o rio o qual a barca atravessava, sua temperatura e cor e, logo em seguida, falaram da criança. A mãe conta sobre a febre, a moça pergunta se é o caçula e a outra conta que é o único, pois o primogênito já havia partido.
Lembro-me dele. Fiquei feliz de não tê-lo conduzido, mas soube do caso. Levar primogênitos é o pior tipo de serviço. Os pais criam muitas expectativas em torno do primeiro filho, os imaginam quando adultos, imaginam a faculdade, cobram mais deles, exigem mais, responsabilizam mais. A criança brincava de mágico, a mãe e o pai assistiam, até que ela anunciou vôo e se jogou do muro. Logo quando aterrissou, um condutor já o aguardava. Conversou e o guiou. Os pais se desesperaram, mas não havia nada a ser feito. Acredito que o meu colega de trabalho – se é que posso chamá-lo assim - apenas levou a criança e não olhou para trás. Ninguém que leva uma criança consegue olhar para trás.
Acariciei o pouco cabelo do menino no colo da mãe, ele choramingou e ela o ninou. Eles sempre se incomodam um pouco ao primeiro contato. Apesar de sermos feitos de luz, nós, condutores, somos gelados. Por onde passamos, pessoas se encolhem tremendo ou abraçam os próprios casacos tentando se aquecer. O bêbado culpou o seu interlocutor inexistente pelo frio.
Olhei para as duas novamente. Elas conversavam sobre o ex-marido da mãe da criança. Um homem simplório. Reencontrou uma antiga namorada e ficou fazendo piadas, dizendo que ela havia ficado feia, mas só para tentar convencer a si mesmo de que não tinha interesse. Como o previsível, na primeira oportunidade, esqueceu sua esposa, seu bebê e nem sequer teve consideração pelo filho falecido e fugiu, sem nenhuma dignidade. A mulher não desejava nenhum mal a ele, ao invés disso, se focou em seu menino - o que foi bom para ela, evitou que entrasse em crise. Mas esse homem não é assunto meu e nem será por muito tempo. Ouvi dizer que viverá muito ainda. Pena que não posso dizer o mesmo pela sua nova esposa.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Identifiquei-me um pouco com a mãe da criança. Presenciou tantas desgraças e se manteve firme. Eu conduzo almas e também me mantenho firme. Não é apatia e nem indiferença. Talvez seja praticidade. Não podemos mudar as desgraças, somos obrigados a fazer parte delas, então, por que se desesperar? Por que se entregar à depressão? Seria ainda pior. A diferença é que ela tem a opção, eu não.
E então, elas começaram a falar sobre fé. A mãe contou que teve um sonho. Sonhou com Deus e viu seu filho falecido brincando com o Menino Jesus, no paraíso. Depois de tal sonho, sua fé ficou mais forte do que nunca. De fato, foi só um sonho. Ela não teve nenhum contato com nada divino ou superior, apenas sonhou. Se isso foi bom para ela, melhor assim. Mortais precisam de algo para se manterem focados e ela tem sua fé. Não devo recriminá-la ou desprezá-la. Na verdade, ela deveria ser um exemplo para os outros mortais. Um exemplo trágico, mas um bom exemplo.
Enfim, chegou a hora. Preciso levá-lo. Peguei-o no colo com cuidado, acomodei-o, falei algumas palavras de reconforto e fiquei de pé. A mulher esnobe olhou para o corpo do menino no colo da mãe e se inquietou. Eu sentiria pena, se compreendesse esse sentimento. Um serviço é um serviço, existe um motivo para tudo e não cabe nem a nós, seres celestes, compreender o plano Dele, quanto menos aos mortais. Caminhei para o fundo da barca levando a criança comigo. Queria entregá-la à luz logo e terminar o meu trabalho pelo dia.
- Você vai levar a criança, não vai, seu porco? Vocês são uns malditos... Todos são! ... Dizem que cuidam de nós... Não cuidam nada! Não dão a mínima! ... É só um bebê! Por que vai levar um bebê? Leva a mim, seu maldito... Por que o bebê?
O bêbado falava comigo. O tempo todo, o bêbado estava falando comigo. Ele gaguejava, mal estava consciente, às vezes roncava e voltava a resmungar. Fiquei ouvindo o que ele dizia. Perdia muito tempo com impropérios, mas ele tinha alguma razão. Nunca questionei o meu trabalho, quase nenhum condutor questiona, mas o idoso me fez refletir. Olhei para ele, olhei para a criança, olhei para a mãe. Eu não compreendo os planos Dele. E por um instante, também não me importei com plano nenhum. O velho caiu no sono, a moça esnobe já estava de pé, pronta para sair correndo da barca. A mãe começava a notar o filho em seu colo.
Devolvi a criança.
O bebê acordou no colo da mãe e ela sorriu. A moça esnobe suspirou em alívio. Mãe e filho foram embora da barca, parecendo mais vivos do que nunca. O velho teve que ser acordado pelo bilheteiro. A esnobe foi por ultimo. Eu observei. Pude perceber algo em comum nos quatro tripulantes daquela barca: todos valorizam a vida, cada um da sua forma. Fascinante.
Mortais são mesmo fascinantes.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Pulso do Desejo

Depois que os pesadelos começaram, eu perdi a noção do tempo. Minhas memórias eram apenas fragmentos entre meus momentos sãos e meus tormentos. Sem descanso, sem pausa, sem refeições. Apenas situações pateticamente cotidianas ou bizarramente surreais.

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Esse fragmento começa na escada rolante. Meus olhos miravam o degrau metálico e sujo e minha mente não se focava em absolutamente nada. Eu estava indo encontrá-la. Fui caminhando pelos longos corredores da estação - arquitetura “moderninha”, bem colorida, ângulos redondos. Já era noite e os corredores estavam desertos, dando uma sensação peculiar de solidão, mas eu não me importei e apenas continuei caminhando.

Passei meu cartão no sensor da roleta, tentei atravessá-la e ela emperrou. Olhei para o visor da máquina e meu saldo havia sido descontado, mas a roleta estava travada. Empurrei mais uma vez e nada mudou.

- Ei! Alguém! Alguém me ajuda aqui!

Silêncio.

Olhei ao meu redor, nenhum segurança, nenhum movimento. Resmunguei comigo mesmo e pulei a roleta, dane-se. Desci mais uma escada rolante até a plataforma do trem. Enquanto esperava, tive a impressão de estar sendo observado. Olhei ao redor, mas nenhuma alma viva habitava aquela estação. Ignorei.

Fiquei satisfeito ao ver a luz vinda do túnel e ao ouvir o forte deslocamento de ar do trem chegando. Não empolgado ou feliz, apenas satisfeito, como ficamos satisfeitos por qualquer coisa mundana. O trem parou com seu som estridente e a porta se abriu. Entrei, distraído, sentei em qualquer banco e deixei minha cabeça pender para trás.

E então, logo na minha frente, pude ver seus cabelos cacheados. Confesso que, por um segundo, eu perdi o fôlego. Não esperava encontrá-la lá, dentro do metrô, no meio de um túnel. Um sorriso se esboçou no canto do meu rosto e eu a chamei:

- Bia!

Ela virou o rosto em minha direção. Os cachos loiros se agitaram por um instante, lábios vermelhos num tom nem muito forte e nem muito tímido, olhar perspicaz e preciso em minha direção e a resposta:

- Oi.

Não era ela. Levei um susto, pois era idêntica, mas não era ela. Rosto oval, nariz pequeno e arrebitado, olhos e sobrancelhas castanhos em contraste com os cabelos loiros. Cada detalhe era igual, exceto pelo olhar e pelo batom. Era o rosto da minha namorada, mas não era ela.

- Desculpe, eu te confundi.

Ela sorriu.

- Então, como sabe meu nome?

O tom era completamente diferente. Fala firme de quem calcula cada palavra e sabe usá-las. Sem timidez, sem receios. Voz de pessoa decidida.

- Seu nome é Bianca?

Ela deu uma risada suave.

- Não, é Beatriz.

- Desculpe, Beatriz, te confundi com outra pessoa. Não quis incomodar.

Ela se virou em minha direção, apoiou o braço sobre o assento e o rosto sobre a mão.

- Não vai me dizer seu nome?

- Ah! Desculpe! Me chamo Miguel.

- Hum, nome de anjo, que bonito – seu sorriso descontraído e seguro de si dominava o vagão daquele trem.

Eu não sabia o que responder e fiquei sem reação. Seus olhos não desgrudavam dos meus e isso a tornava um pouco assustadora, mas, ao mesmo tempo, convidativa. Não parecia tentar seduzir, mas tentar decifrar algo em mim com muito interesse.

- Está bem arrumado, Miguel. Vai a um encontro? – Ela continuou. Suas sobrancelhas se arquearam em expressão de curiosidade felina.

- Mais ou menos. Vou encontrar uma pessoa.

- Hum, uma pessoa, entendi. E vai encontrá-la onde?

- Já faz um tempo que não nos falamos, na verdade. Esse horário, ela deve estar saindo do curso e eu vou tentar encontrá-la lá.

- Tentar encontrá-la? E se ela fugir de você?

- Fugir de mim? Por que ela faria isso?

Beatriz fez uma expressão de quem ouve uma pergunta óbvia:

- Ela é uma mulher, oras. Mulheres, às vezes, fogem.

- Sim, ela é bem parecida com você, inclusive, eu poderia dizer que são gêmeas.

- Gêmeas? – uma risada – Não tenho irmã gêmea, graças a Deus. E nem tenho um clone.

- Imagino que não. E você? Está indo onde?

Seu sorriso aumentou revelando dentes impecavelmente brancos, de medidas perfeitas, esbanjando satisfação com minha pergunta, mas não tivemos tempo para falar mais. Quando seus lábios vermelhos prepararam uma resposta, o trem pareceu desacelerar, suas luzes piscaram algumas vezes e, como uma cortina degradê, todo o vagão ficou escuro. Eu não conseguia ver nem sequer um palmo a minha frente. Minha noção de espaço ficou fraca e eu segurei a barra de apoio do banco da frente para não tombar para o lado.

- Beatriz, você está bem?

Ela não respondeu. Eu tentei enxergar algo próximo a mim, mas cada vez que virava a minha cabeça, parecia que o mundo inteiro se deslocava junto da minha visão e eu achei melhor respirar um pouco para não acabar esbarrando em algo. Depois de um instante, meus sentidos pareciam mais firmes e eu arrisquei me levantar. Vaguei com minha mão esticada até encontrar a barra de apoio do meio do vagão. Minha visão começou a se acostumar e eu dei alguns passos em direção à moça.

- Beatriz?

Caminhei até seu banco e pude ver a silhueta de seu corpo na mesma posição que estava antes, sentada em silêncio.

- Droga, qual é o seu problema? Por que não me responde?

Botei a mão em seu ombro e senti plástico. Dei um passo para trás de susto e me esforcei para enxergá-la melhor. Ela parecia toda cinza. Me aproximei, encostei nela de novo e senti o material gelado e sólido novamente. Fiquei paralisado. Tinha um manequim na minha frente. Inacreditável. Impossível. Quando me dei conta do absurdo que estava acontecendo, larguei a boneca e pus-me a andar.

Talvez o maquinista ainda estivesse na cabine. Minha visão era muito precária, andei em passos largos, mas mantive minhas mãos esticadas, me guiando pelas barras de apoio e fui atravessando o trem de vagão em vagão. Pensei ter ouvido um movimento atrás de mim, pensei na possibilidade de ser Beatriz e olhei para trás. Fiquei um instante parado, tentando enxergar algo e ouvi um murmuro grave. Logo, percebi uma figura andando lentamente, meio cambaleando, em minha direção, grande e larga demais para ser uma mulher. Senti um calafrio. Não importa o que fosse aquilo, não era confiável e eu preferi continuar meu caminho.

Mantive o passo apressado até alcançar a cabine do piloto. A porta estava aberta, mas não consegui entrar. Logo que dei o primeiro passo dentro da cabine, senti um cheiro muito forte e repulsivo e voltei, por reflexo. Respirei por um instante, mesmo no vagão, o ar era denso e parado, difícil de inspirar. Tentei pegar fôlego por um instante e logo ouvi o murmúrio de novo, vi que não tinha muita escolha e me forcei a entrar na cabine. Era sangue. O cheiro era de sangue. Consegui ver duas pernas uniformizadas estiradas no chão e mais nada. Não tive coragem de tentar verificar se havia algo além das pernas ali e me dirigi à porta da cabine.

Pulei para o túnel e logo que pousei no chão, me pus a tossir violentamente. Puxei o ar com força e agradeci que o cheiro de sangue havia ficado para trás. Não tendo para onde ir, segui o caminho dos trilhos pelas laterais do túnel, me guiando para próxima estação, onde eu poderia procurar uma saída.

Enquanto caminhava, a mesma sensação de estar sendo observado surgiu de novo, mas, dessa vez, eu não parei para procurar ninguém, apenas acelerei meus passos. Quanto antes saísse do subsolo, melhor. Andei até achar a estação seguinte e pulei para a plataforma.

Mesmo enxergando apenas silhuetas, era extremamente inconveniente andar quase às cegas. Caminhei até a parede e fui seguindo até as escadas. Conhecia aquela estação, seriam longos corredores e algumas escadas até a superfície, mas, pelo menos, não seria difícil encontrar a saída. Subi a primeira escada e segui pelo primeiro corredor, até ouvir passos de um salto-alto.

- Beatriz?

- Miguel! Droga! Por que você sumiu?! Eu estava apavorada! – ela correu em minha direção e me abraçou. Ela era uma mulher alta, apenas alguns centímetros mais baixa do que eu, mas tremia como uma menina. Para o meu desconforto, exatamente a mesma altura que Bianca.

- Não fui eu que sumi? Foi você que... – iria acusá-la de ter desaparecido, mas minha fala ser perdeu enquanto me dava conta do absurdo que estava prestes a falar.

- Eu que o que? – Beatriz estava muito agitada e, naquele exato momento, parecia indignada.

- Quando tudo ficou escuro, você não estava mais lá e agora apareceu aqui.

- Que bom que você já decidiu que eu não sou a irmã gêmea e nem um clone da sua namorada e já tem certeza de que eu sou um fantasma!

- Não foi isso que eu quis dizer. E como você sabe que ela é minha namorada? – falhei em tentar acalmá-la com minha explicação, mas logo me dei conta do que ela havia dito e me indignei também.

- Vai mesmo ficar se preocupando com isso? – seu tom de voz se acalmou, mas, para meu constrangimento, passou para o sarcasmo, me fazendo parecer um idiota. - Não vai me ajudar a sair desse pesadelo?

Um instante de silêncio.

- Pesadelo?

- É, oras! O que mais isso poderia ser? Um pesadelo dos bem bizarros, inclusive.

- Se sabe que é um pesadelo, por que está assustada?

- Porque eu não consigo acordar! Você consegue perguntar algo que não seja óbvio?

Eu pensei em responder algo, levantei meu dedo de tão contrariado, mas desisti e deixei meu braço pender no ar.

- Além do que... – ela continuou – Do seu lado, eu não fico tão assustada. Vamos, eu quero ir p’ra casa. Se já tiver desistido do seu encontro, a gente dá uma passada lá e fazemos algo para esquecer essa experiência bizarra.

Beatriz parecia querer que eu comandasse a situação, mas era difícil ter punho com uma mulher tão dominante como ela. O tipo de mulher que intimida um homem. Sua semelhança física com Bianca e sua personalidade imensamente diferente me deixavam ambiguamente íntimo e desconcertado.

- Ok, vamos.

Caminhamos pelo corredor, seus passos eram a única coisa audível naquele caminho. Chegamos até uma escada rolante parada e ela estendeu a mão para que eu a ajudasse, sem me dar a opção de não ser cavalheiro. Ela subiu um passo depois do outro, tomando muito cuidado para seu sapato não prender no vão de um degrau. Eu a conduzi, sempre tentando vigiar suas costas e olhar pelo nosso caminho. A calmaria começava a me incomodar.

Depois de um tempo, chegamos ao corredor seguinte e continuamos a andar. Era a primeira vez que Beatriz ficava em silêncio e isso me perturbou, como se eu já soubesse que ela não tinha esse hábito. Curiosamente, o hábito de Bianca era justamente ficar em silêncio. Eu queria que as duas fossem diferentes, talvez para me convencer de que eu não estava ao lado da minha namorada ou para não criar intimidade com uma estranha. De certa forma, eu me sentia ao lado da minha namorada e, ao mesmo tempo, traindo-a.

Eu já podia ver a silhueta do próximo lance de escadas quando ouvi os passos de Beatriz pisarem mais forte no chão e, repentinamente, pararem. Me virei para ver como ela estava e ouvi um som de engasgo e contração forte.

- O que houve?

Ela estava curvada e segurando a boca, como quem está prestes a vomitar.

- Espere... Espere aqui – ela falou com dificuldades e se apressou para uma porta que eu nem havia notado que estava ali, mas estava trancada. Ela caiu de joelhos em um espasmo violento.

- Beatriz! – corri em sua direção e botei a mão no seu ombro. – O que você tem?

- A chave... Pegue a chave... – olhei para a porta e pude ver uma cruz vermelha em seu topo. Era a enfermaria.

Chutei a porta, tentando arrombá-la, sem nenhum efeito. Dei outro, com toda a minha força, mas não foi o suficiente. Fiquei ofegante, o ar pesado dificultava tudo e eu mesmo me sentia um pouco fraco naquele ambiente.

- A chave, seu idiota... – Beatriz insistiu.

- Droga, eu não sei onde ela está.

- Na cabine de segurança, do lado da roleta... – sua voz era fraca e seu rosto se contraia numa careta de incomodo e dor.

- Não vou largar você aqui sozinha.

- Anda logo! – ela tentou mandar.

Respirei fundo.

- Você vai comigo.

Peguei seu braço e passei por trás do meu pescoço, ajudando-a a se levantar e segui em direção à escada. Ela praticamente não andava, mas eu segurei firme a sua mão por cima do meu ombro e sua cintura. Ao chegar à escada, percebi que seria impossível levá-la daquele jeito e peguei-a no colo. Como toda mulher alta, era um pouco pesada, mas eu estava tão preocupado que simplesmente ignorei esse detalhe.

Subi em passos rápidos, alcancei o último corredor e segui reto até a cabine de segurança. Quis pular a roleta e correr com ela para um hospital, mas pude ver que os portões da saída estavam fechados, o que deixava a enfermaria como única opção no momento. Beatriz precisava estar bem primeiro e depois procuraríamos a saída.

Entrei na cabine, ignorei os monitores desligados e os aparelhos de rádios e revirei as gavetas da sala. A primeira estava vazia, a segunda tinha uma caneta, a terceira uma lanterna, peguei o item, tentei ligar, mas estava sem pilha, joguei no chão e abri a quarta gaveta, que só tinha um bocado de papéis. Na quinta, achei um molho de chaves. Botei no meu bolso e corri para o lado de fora, para pegá-la no colo de novo.

Beatriz já estava quase inconsciente, sua cabeça, seus braços e suas pernas pendiam em meus braços. Seus olhos estavam entreabertos, piscando, sem foco. Corri pelo caminho de volta, desci a escada, atravessei o corredor seguinte em poucos passos e cheguei até a porta. Pousei os pés de beatriz no chão, segurando-a apenas por um braço, deixando todo o seu peso apoiado no meu corpo e peguei as chaves.

Enquanto testava a primeira chave, ouvi passos por uma das escadas. Olhei e pude ver um corpo cambaleando em minha direção. Olhei para a fechadura, forcei a chave, mas era a errada. Com as mãos tremendo, testei a segunda. Espiei a escada com os olhos e pude perceber que não era só um. Mas dois, três, quatro, cinco, incontáveis, todos murmurando um mantra mórbido. Parecia que uma multidão vinha num ritmo lento e constante. A segunda chave também não servia. Ouvi passos pela outra escada e outra silhueta se revelou. Logo outra, e outra, e outra. Calafrio. A terceira quase não entrou na fechadura, de tanto que eu tremia. Girei e ouvi o “clic”.

Corri para dentro, carregando Beatriz em meus braços. Tentei me trancar por dentro, mas logo que pus a chave na fechadura, o impacto violento da porta sendo arrombada atingiu meu ombro, me fazendo girar no chão junto com Beatriz. Eles estavam invadindo a enfermaria. Levantei aos tropeços, agarrei-a pelos braços e carreguei-a enfermaria à dentro, desesperado, procurando uma saída milagrosa. Arrastei a coitada, tentando erguê-la em meus braços, mas logo tropecei e tombei novamente. E as silhuetas vieram. Dezenas. Centenas. Incontáveis. No chão, tentei puxá-la do alcance deles, mas não fui forte o suficiente e ela foi levada.

Sem força nas pernas, me arrastei como um verme tentando fugir covardemente, me agarrando num armário e me puxando para longe de meus perseguidores. Comecei a ficar tonto, minha cabeça começou a girar. Ouvi múrmurios. Meus olhos giraram para dentro do meu crânio e voltaram a mirar o chão num movimento de bambolê. As sombras se aproximaram, as paredes e o teto começaram a se fundir em minha visão. Por um segundo, senti uma mão me agarrando pela gola e me puxando, meu queixo pendeu solto da boca e meus olhos viraram pela ultima vez, acompanhando minha cabeça que pendeu para trás. E eu já não sentia nada.

- Bêbado!

Dei um pulo. Estava na enfermaria do metrô ainda.

- Como entrou aqui? Essa área é restrita p’ra funcionários e p’ra casos de emergência, o que deu em você? ‘Tá de ressaca?

Parecia estar.

- Me desculpe, senhor, já estou saindo.

O guarda me encarou feio, parecia prestes a me dar uma surra ali mesmo, mas eu caminhei direto para porta de saída. Do lado de fora, algum movimento. Uma pessoa passava pelo corredor e outra descia as escadas. Pouca gente, normal para aquele horário da noite. Me senti estranho, deslocado. Senti como se o meu lugar fosse nos pesadelos e não no mundo lúcido.

Respirei fundo. Pensei por um instante. Me esforcei para me desapegar de tudo que havia passado. Me esforcei para me convencer que havia sido tudo um pesadelo e que agora eu estava acordado. Nada havia acontecido. Nada havia acontecido. Nada havia acontecido.

- Melhor ir a pé.

Saí da estação e caminhei até o curso de Bianca.

Nada havia acontecido.

Ela não estava lá e uma colega dela me informou que ela já não ia às aulas há três meses.

Decidi que iria procurar em outro lugar.

Nada havia acontecido.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cidade Paraíso

-“Eu posso salvá-lo”, era o que eu sempre dizia p’ra ela.

- E agora ela foi embora?

Respirei fundo.

- É...

Alice havia ido embora, depois de um ano de nos conhecermos, junto de seu irmão mais novo. Eu e meu amigo David estávamos debruçados na janela do prédio abandonado olhando para o cemitério sem nome jogando conversa fora. Meu celular tocou e eu não dei importância:

- Não vai atender?

Ignorei ambos celular e David e mantive meu olhar na lua cheia. Depois de mais um suspiro:

- A mulher realmente me fazia lembrar algo, sabe? Uma sensação... Uma sensação que eu não sentia desde antes do Abraço.

- Você já está bem grandinho p’ra isso, já faz quase meio século que você não vê a luz do sol e ainda inventa de se apegar a algo mortal, ainda mais uma mulher. Pare de beber sangue de viciados. Até porque, pelo que eu saiba, essa mulher era cigana e se o Príncipe Vid...

- Que se dane o Príncipe! – eu o interrompi.

Mais um instante de silêncio. Meu celular voltou a tocar. Ignorei novamente. Quando o silêncio voltou, eu continuei:

- O Jazz Fest vai ser uma merda sem ela.

- Foi quando vocês se conheceram, né?

- É...

- O que o irmão dela tem mesmo?

- Câncer... Eu sempre dizia: “eu posso salvá-lo”, mas nunca pude explicar como e ela nunca pode entender... Até...

- Até ela descobrir que você chupa sangue pra sobreviver e ir embora.

...

- É...

David se virou em minha direção:

- Foi melhor assim, você sabe que a Família nunca iria aceitar que essa guria ficasse na cidade. Ela vai estar mais segura longe.

Minha expressão ficou mais grave e séria:

- Vou sentir falta do sangue dela.

- Algo além do sangue?

- Nada que eu vá lembrar daqui a alguns anos. Mas o sangue vai demorar mais p’ra esquecer.

O celular tocou de novo. Ignorei.

- Atende esse lixo logo.

- Não.

David balançou a cabeça negativamente, mas não deu bola. Logo o celular parou de tocar.

- Eu podia salvar o irmão dela... Tsc.

David me encarou por um instante:

- Vocês tinham até uma música, né? Que bonitinho – ele ironizou.

- Hehe, é... Ela sempre repetia o nosso trecho favorito: “A batida não é ruim, mas a letra está toda errada”, engraçado, não?

- Decadente – ele respondeu com secura.

Voltamos ao silêncio até que o celular de David tocou. Ele atendeu.

- Alô... Fala, Alonso... Que? Espera ai... Edgar, quando que a garota saiu da cidade?

- Deve estar na estrada nesse momento, por quê?

- Deve estar na estrada... Espera... Edgar, ela está indo de ônibus, de moto, de...?

- Ela deve ter roubado um carro, por que, droga?

- Deve ter roubado um carro... O que? ... Sério? ... Droga!

Ele desligou o celular e me olhou como se tivesse visto um fantasma.

- O Alonso ‘tá no Elísio.

- E daí?

- Ele ouviu uma conversa que envolvia você.

- Como é que é?

- Ele suspeita que os capangas do Savoy estejam atrás da sua garota.

- O que?!

- É! Parece que ele soube do seu caso com ela e quer raptá-la, não temos tempo p’ra discussão, você tem que achá-la!

- Merda!

Corri para pegar minha moto, enquanto David ficou no prédio, mexendo no celular. Em questão de segundos já estava ligando a chave e apertando o acelerador. Estava chegando na estrada mais próxima quando David me ligou de novo.

- Edgar, eu falei com meus contatos. Um carro azul de placa MHI-2272 foi roubado hoje, deve ter sido sua namorada. Os capangas de Savoy foram vistos se dirigindo p’ra estrada a caminho de Houma, acelere antes que eles a encontrem.

- Te devo essa.

Desliguei e apertei os aceleradores.

Em menos de meia hora já estava na estrada. Meu cérebro se tornava, aos poucos, nebuloso. Uma fera não é boa em proteger alguém, mas é excelente em caçar. Os pensamentos se tornaram rasos. A fera abanou a cauda.

Não sei quanto tempo demorou, mas logo eu via os “baba-ovos” do Savoy – meia dúzia - na minha frente e, mais a frente, o carro azul. Os prédios já haviam ficado para trás e nenhuma autoridade poderia aparecer num raio de quilômetros. Era matar ou morrer.

Permiti que meu sangue fervesse aguçando meus sentidos. Saquei minha colt e dei o primeiro tiro: Em cheio no pneu traseiro de um dos capangas. A moto cambaleou sem controle, esbarrou em outra e os dois capangas capotaram se embaralhando e rodopiando pela estrada, ficando para trás. Sorri.

Logo que os quatro restantes perceberam minha presença sacaram armas e se prepararam para atirar. Acelerei o máximo que pude, fiz meu sangue ferver novamente, fazendo meus músculos e minha pele se enrijecerem, me aproximei e passei por entre dois dos motoqueiros. Os capangas foram tão burros que tentaram atirar em mim no meio da manobra e atingiram um ao outro, como eu havia planejado. Mais dois perderam o controle de suas motos e rolaram pela estrada. Neófitos me divertem.

Diminui a velocidade para ganhar distância do último motoqueiro na minha frente. Ele disparou duas vezes em minha direção, mas errou de longe. Eu mirei bem nas costas do desgraçado, não sou do tipo que desperdiço munição. Cerrei meus olhos, cessei a respiração, preparei o dedo no gatilho, mas ele disparou antes, e não mirou em mim. Ele atirou no carro.

Não pude acreditar no que meus olhos viram. O maldito disparou seguidamente no carro, acertando nos pneus, nos vidros, na lataria. O carro perdeu o controle tentando frear. Senti a besta dentro de mim se arrepiar e mostrar as presas. Repeti o gesto do capanga e apertei o gatilho repetidamente, acertando ambos moto e piloto sem contar quantas vezes. Ele caiu sobre o guidão e se deixou cair da moto, já morto.

Freei bruscamente, largando meu veículo na estrada sem me importar com mais nada e corri em direção ao carro. Não dava para ver por dentro por causa dos vidros da janela completamente rachados. Fui abrir a porta e senti uma perfuração quente em meu ombro.

Olhei para trás e vi um capanga com a arma apontada. O maldito deve ter usado alguma bruxaria para ficar invisível e me fazer esquecê-lo. Logo que nos encaramos, ele apertou o gatilho mais vezes, mas eu me joguei para o lado sendo atingido uma única vez e descarreguei o que sobrava de munição da colt em cima do desgraçado. Eu cai no chão com os olhos bem abertos e a arma ainda apontada para o desgraçado. Ele caiu no chão com o corpo mole e esburacado. Me levantei, fui até o corpo imóvel e enfiei meu calcanhar na garganta do capanga, garantindo que ele não levantaria mais.

Sem perder tempo voltei para o carro e abri a porta.

- Vitor! Vitor! Fique acordado! Olha p’ra mim! Vitor!

O irmão dela havia sido baleado.

- Eu levo ele p’ro hospital! Você pega a moto do morto e me segue!

O rosto dela estava coberto de lágrimas. Peguei o rapaz nos meus braços, subi na moto e com a velocidade que cheguei na estrada, voltei para Nova Orleans.

Dane-se a Família, dane-se o Príncipe, dane-se Savoy, o garoto não podia morrer.

Fui o mais rápido possível para o hospital mais próximo da periferia e entreguei o garoto para os médicos. Alice ficou chorando horas no meu ombro.

Liguei para David e Alonso avisando de tudo que ocorrera e pedi para que eles vigiassem minhas costas naquela madrugada.

Depois de duas horas no hospital o médico falou com Alice. O estado do garoto era grave e era quase certo de que ele iria morrer:

- Por quê? – ela me perguntou em meio aos soluços.

- É difícil não ter inimigos na Família... Um dos meus resolveu pegar você.

- A gente tinha conseguido uma vaga p’ro tratamento dele em Houma, ele ia ser curado.

Quando nos tornamos vampiros, esquecemos de muitos sentimentos humanos. Mas o ódio a gente não esquece nunca. Eu fiquei olhando o garoto na cama da UTI, cheio de curativos, respirando por aparelhos. Quase ninguém nesse mundo é inocente, mas aquele garoto ainda era e a vida dele estava escorrendo pelo ralo na minha frente. Eu não tinha certeza do que o Savoy queria, mas o circo tava prestes a pegar fogo e eu tinha que estar preparado. Não era mais questão de sobrevivência, eu ia ter que atacar e estava bem decidido disso. Em meio aos meus pensamentos, eu ouvi a voz de Alice:

- Edgar...

Eu olhei para Alice. Os olhos castanhos estavam completamente vermelhos e ela ainda não havia parado de chorar. Ela segurou os soluços por um instante enquanto me encarava, controlou a respiração e ficou em silêncio me olhando, mas com algo na ponta da língua para falar.

Ela parecia ter certeza de algo, mas ainda assim com medo. Até uma semana atrás, ela não acreditava em vampiros e agora o irmão dela estava à beira da morte por causa de um de nós. Seus lábios se desgrudaram, ela respirou mais uma vez e disse a frase decisiva que iria, sem eu saber, virar o tabuleiro entre eu e Savoy:

- Salve-o.

A Família podia ser ingrata, mas sempre aumentava de forma divertida.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Atrás das Grades

Soou a sirene, hora de recolher. Cada um num ritmo vagaroso parando de fazer o que fazia e se dirigindo, sem a menor pressa, para os corredores. No começo, eu fazia careta na hora de recolher - todos faziam - mas chega uma hora que já é natural. Estar dentro da cela é tão normal para um presidiário quanto estar dentro de um escritório é para um cidadão: é onde passamos a maior parte dos nossos dias não fazendo nada.

Eu estava sentado num banco, olhando os outros jogarem bola. Minha cara era sempre a mesma, não importava se fizesse frio, calor, sol, chuva, se jogavam bola ou se espancavam alguém no meio da quadra. Alguns já me conheciam, outros haviam chegado depois da minha ultima estadia aqui. Deve ser a terceira vez que venho parar nessa jaula. Deve fazer algumas semanas que eu voltei e até que passou rápido. Não é tão ruim depois que se acostuma.

Levantei desleixado e fui arrastando os pés em direção ao portão. Os guardas só olhavam, sabiam que ninguém iria tentar nenhuma gracinha, mas sempre olhavam com cara de emburrados. Palhaços. É só meia dúzia de presos se revoltarem que metade se borra todo. Alguns dos meus “colegas” ainda mantinham a empolgação do jogo, se empurrando e se xingando. Outros pareciam imitar os guardas, fazendo bico e olhando de cima para baixo. Nada havia mudado.

Enquanto andava, entrando aos poucos na fila que se formava no caminho para o portão, minha visão começou a escurecer. Uma sombra começou a cercar as bordas dos meus olhos, como fumaça, deixando apenas dois pequenos globos visíveis no centro. Pisquei e tudo voltou ao normal – pensei que fosse sono. Continuei andando e as sombras voltaram. Devagar, mas perceptíveis, pisquei e elas se afastaram, mas não por completo. Ficou tudo negro, pisquei e um pequeno globo se abriu e logo se fechou de novo. Senti meu ombro esbarrar no portão aberto, mas já não enxergava nada. Senti minha cabeça pesar no meio da escuridão, comecei a piscar repetidamente, tentando fazer minha visão voltar, mas não funcionava. Cai de joelhos sentindo tontura, esfreguei os olhos, pisquei, pisquei, pisquei, pedi por ajuda sem ser atendido, arregalei os olhos, mas tudo era negro. Ouvi a batida grave do portão atrás de mim. Ouvíamos o portão batendo todos os dias, mas, dessa vez foi mais sonoro, pareceu até ecoar, como se tudo fosse vazio ao meu redor.

Aos poucos, minha visão foi retornando, mas ainda limitada, como se eu estivesse me acostumando a enxergar no escuro. E realmente estava.

Olhei para o portão, ainda fazendo careta para forçar os olhos, e pude observá-lo de perto. O ferro parecia enferrujado, como se estivesse abandonado a décadas. Cheguei mais perto e o fedor de ferro desgastado se tornou nítido. Havia ferrugem em toda a parte. Ele estava realmente apodrecido e não era impressão minha. Encostei minha mão no ferro e olhei para meus dedos: estavam imundos. Não era ilusão. A visão, o cheiro, o tato, era real.

Mas que diabos era aquilo tudo?

Olhei ao meu redor. Meus olhos já pareciam estar normais, limitados apenas pela escuridão do corredor. Caminhei, podendo ver apenas a silhueta do outro portão, que levava até a ala B1. Me aproximei e ele parecia estar igualmente desgastado, todo cinza e negro de ferrugem e imundice. Tive que forçá-lo para sair do lugar, fazendo um rangido estridente, longo e incômodo. Fiquei um tempo parado, na passagem, tentando enxergar algo, em vão. Bati palmas limpando a mão e entrei.

Dentro da ala B1, pude ver apenas as barras das celas e a porta para o corredor da ala, nada mais. Olhei para as paredes, para o teto, para o chão. Minha única noção de espaço eram as barras e a porta, mais nada. Andei, ficando mais ou menos no centro da ala, insistindo em tentar ver algo. Após alguns instantes, eu desisti e pus-me a andar em direção ao o portão.

Atravessei, passei por um corredor curvo, tendo que me guiar com a mão na parede. Mal vi a porta na minha frente e precisei apalpá-la para achar a maçaneta. A textura de tudo era extremamente decadente e suja. Engoli seco, segurando o nojo. Talvez, não ver era melhor do que ver o que eu estava encostando.

A ala B2 se encontrava na mesma situação. Acreditar que aquilo era real era estúpido demais e, ao mesmo tempo, negar aquelas sensações seria inútil. Até o ar que eu respirava era diferente, mais parado, pesado, escasso, mas era ar. Não podia enxergar as paredes e nem o chão, mas podia senti-los a cada passo. Não podia enxergar o teto, mas tinha noção de que havia algo acima de mim.

Caminhei, tentando olhar cada uma das celas. Tudo no mais absoluto silêncio. Alguns diriam que o lugar parecia morto, mas até morte parecia distante ali. Nem vida, nem morte. Nem pós-vida e nem não-vida. Apenas silêncio e escuridão. Mas as barras das celas, de alguma forma, me aliviavam: elas ainda existiam, diferente de todo resto. Elas me traziam a segurança de que eu ainda estava no mesmo lugar e que as coisas ainda estavam onde deveriam estar. Fiz questão de olhar na direção de todas as celas, uma por uma. Esquerda e direita, esquerda e direita, esquerda e... E nada na direita.

Eu conhecia bem aquela prisão e todas as celas pareciam estar em seus lugares, exceto a B14. Ela estava sem grades. Me aproximei, tentando enxergar o que havia de errado. Senti a parede com a mão e estiquei um pouco o pescoço para dentro do bloco vazio, onde deveria ser uma cela. Os olhos espremidos, tentando flagrar algo. E então, um movimento. Dei um passo para trás, sem entender o que havia visto. Outro movimento. Respirei fundo, tentei ignorar o suor escorrendo pelo canto do meu olho, me mantive firme. Outro movimento. Algo estava pulsando.

Então, um grito. Agudo e rasgado, cheio de dentes. Pulei para trás e cai no chão. Olhos arregalados, queixo tremendo. Uma mão com garras longas e finas se esticava, tentando agarrar algo, os olhos esbugalhados, cheios de maldade me encaravam fixos, a boca repleta de espinhos e cravos desordenados, a pele pálida, nitidamente suja, solta aos ossos, quase nenhuma carne. O bicho se esticava, arranhando o chão, rosnando e gritando bestialmente. Seja lá o que era aquilo, queria me alcançar. Mas não podia andar, estava preso. Parecia estar preso pelos pés a algo. Dane-se, eu não precisava saber mais do que já havia visto.

Aquilo foi o suficiente pare eu me desesperar. Dei um encontrão na porta que eu sabia que estava atrás de mim e subi correndo pelas escadas. Cheguei à ala B4. Tudo continuava na mais completa sombra, mas isso pouco importava naquela hora, eu precisava correr, não importava porquê, não importava para aonde.

Segui para minha direita, aonde eu sabia que teria uma porta para ala B3. Disparei em passos largos, mas apenas três, até uma garra vir do teto, em direção ao meu rosto. Meu instinto mais puro e primitivo me salvo, me fazendo girar o corpo e cair no chão, olhando para cima. Tinha outra daquela criatura no teto, presa pelo tronco. O bicho gritava enquanto empurrava o teto, tentando se soltar e me encarava, lançando uma garra em minha direção em meio aos solavancos contra o concreto em sua cintura. Eu senti meu coração esmurrando meu peito, como se quisesse sair de dentro de mim com um pontapé.

Me levantei, cambaleando, e corri. Atravessei a porta dei mais alguns passos, mas tive que parar, desorientado. Meu desespero era tanto que havia parado de prestar atenção no caminho e simplesmente não tinha mais a menor noção de onde estava. Olhei ao meu redor identifiquei algumas barras das celas, uma porta no caminho aposto da qual entrei e uma outra porta na parede oposta às celas, provavelmente para uma escada. Pensei em qual caminho seguir e este foi o meu maior erro daquele dia.

Eu não sei por quanto tempo aquele som já estava lá até eu percebê-lo, mas eu percebi. Um rosnado. Baixo, contínuo, semi-rouco. Mais do que uma ameaça, era um aviso. Aviso de que iria atacar. Me dei conta de que havia um espaço vazio entre as barras. Havia uma cela aberta. Dela, um passo depois do outro, uma figura não muito alta, fina e pálida saiu. Este não estava preso em nada, apenas mantinha os braços atrás do corpo. Eu hesitei. Ele mostrou as presas.

E avançou.

Baba e cuspe transbordaram da investida. Pulei para a esquerda, deixando o bicho passar direto. Por trás dele, pude ver seus braços presos um no outro, pelos punhos, com as mãos entrelaçadas, fixadas uma na outra. Rapidamente, ele se virou em minha direção e veio de novo.

Dessa vez, interrompi o ataque com um chute no queixo do monstro, empurrando-o para trás. Ele capotou no chão, mas logo se levantou desengonçado, mas, cheio de fúria. Correu, ainda cambaleando, para cima de mim, esquivei pela direita e passei a perna na dele, fazendo-o tropeçar novamente. Aproveitei a chance e corri em direção à escada, encontrando a parede. Tateei o concreto, mas nada de porta. Ouvi um latido molhado trás de mim e me virei para me defender.

O monstro já estava em cima de mim, alguns centímetros. Segurei sua testa e seu ombro tentando empurrá-lo, mas dessa vez, eu que fui para o chão. Tombei com força e ele veio junto. A boca chegando a menos de um palmo do meu rosto, o bafo insuportável e a força movida pelo frenesi cego. Empurrei, chutei e soquei. Minha única vantagem era o bicho não poder usar os braços, senão, teria sido meu fim ali mesmo. Depois de alguns empurrões, consegui afastá-lo o suficiente para chutá-lo, fazendo-o cair para trás. Tentei me levantar, me arrastando no chão, mas meu braço falhou e eu só pude me afastar, enquanto ele preparava outro bote.

Ainda no chão, braços tremendo descontroladamente, respiração disparada, coração me chutando por dentro, suor por todo o corpo, ele veio. Tentei chutá-lo, mas não tive força, atingindo apenas sua coxa, fazendo-o despencar em cima de mim. Empurrei seu queixo para o lado com as duas mãos, mas ele logo girou e se apoiou com os joelhos, me atacando. Fui empurrado contra a parede, ele com um joelho e um pé no chão, ganhando estabilidade, usando a força do tronco. Segurei o queixo e a testa, empurrando com o que ainda restava da minha força. Berros, empurrões, suor. Meu braço cedendo.

A cada segundo, um centímetro mais perto e o bafo abissal se aproximando. Dentes como navalhas abertos desejando fechar com meu corpo dentro. Tremedeira, calafrios, desespero. Meus braços cederam, meus olhos fecharam, meu corpo entregue.

E o mundo, aos poucos, foi clareando.

Alguns risos. A voz de um policial:

- Hei, Trevor. Caiu de maduro?

Uma mão me segurou pelo braço e me ergueu do chão.

Meus olhos ardiam, senti frio pela roupa encharcada. Aos poucos, a visão foi se acostumando. Alguns me olhavam espantados, outros apenas riam.

- Olha só p’ra esse cara. Parece que viu um fantasma. Hei! Trevor! Não diga que se borrou também.

Silêncio. Eu ainda piscava pelos olhos ardendo.

- Tsc, leva logo ele p’ra jaula, não temos tempo p’ra palhaçada.

Fui conduzido até minha cela. Confuso.

Ouvi o som da grade estalando repetidamente enquanto se fechava, finalizado pelo bater do portão de aço. Cocei o rosto, esfregando a palma da mão nos olhos e puxando as bochechas e a boca para baixo com os dedos. Tontura. A blusa estava mais seca, mas ainda incômoda.

Ser presidiário era moleza. Tudo sempre igual, sem novidades. Assaltar para viver já nem parecia arriscado.

Mas, se eu já estava acostumado com um inferno, um outro começou a surgir e eu simplesmente não estava preparado para aquilo.