quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cidade Paraíso

-“Eu posso salvá-lo”, era o que eu sempre dizia p’ra ela.

- E agora ela foi embora?

Respirei fundo.

- É...

Alice havia ido embora, depois de um ano de nos conhecermos, junto de seu irmão mais novo. Eu e meu amigo David estávamos debruçados na janela do prédio abandonado olhando para o cemitério sem nome jogando conversa fora. Meu celular tocou e eu não dei importância:

- Não vai atender?

Ignorei ambos celular e David e mantive meu olhar na lua cheia. Depois de mais um suspiro:

- A mulher realmente me fazia lembrar algo, sabe? Uma sensação... Uma sensação que eu não sentia desde antes do Abraço.

- Você já está bem grandinho p’ra isso, já faz quase meio século que você não vê a luz do sol e ainda inventa de se apegar a algo mortal, ainda mais uma mulher. Pare de beber sangue de viciados. Até porque, pelo que eu saiba, essa mulher era cigana e se o Príncipe Vid...

- Que se dane o Príncipe! – eu o interrompi.

Mais um instante de silêncio. Meu celular voltou a tocar. Ignorei novamente. Quando o silêncio voltou, eu continuei:

- O Jazz Fest vai ser uma merda sem ela.

- Foi quando vocês se conheceram, né?

- É...

- O que o irmão dela tem mesmo?

- Câncer... Eu sempre dizia: “eu posso salvá-lo”, mas nunca pude explicar como e ela nunca pode entender... Até...

- Até ela descobrir que você chupa sangue pra sobreviver e ir embora.

...

- É...

David se virou em minha direção:

- Foi melhor assim, você sabe que a Família nunca iria aceitar que essa guria ficasse na cidade. Ela vai estar mais segura longe.

Minha expressão ficou mais grave e séria:

- Vou sentir falta do sangue dela.

- Algo além do sangue?

- Nada que eu vá lembrar daqui a alguns anos. Mas o sangue vai demorar mais p’ra esquecer.

O celular tocou de novo. Ignorei.

- Atende esse lixo logo.

- Não.

David balançou a cabeça negativamente, mas não deu bola. Logo o celular parou de tocar.

- Eu podia salvar o irmão dela... Tsc.

David me encarou por um instante:

- Vocês tinham até uma música, né? Que bonitinho – ele ironizou.

- Hehe, é... Ela sempre repetia o nosso trecho favorito: “A batida não é ruim, mas a letra está toda errada”, engraçado, não?

- Decadente – ele respondeu com secura.

Voltamos ao silêncio até que o celular de David tocou. Ele atendeu.

- Alô... Fala, Alonso... Que? Espera ai... Edgar, quando que a garota saiu da cidade?

- Deve estar na estrada nesse momento, por quê?

- Deve estar na estrada... Espera... Edgar, ela está indo de ônibus, de moto, de...?

- Ela deve ter roubado um carro, por que, droga?

- Deve ter roubado um carro... O que? ... Sério? ... Droga!

Ele desligou o celular e me olhou como se tivesse visto um fantasma.

- O Alonso ‘tá no Elísio.

- E daí?

- Ele ouviu uma conversa que envolvia você.

- Como é que é?

- Ele suspeita que os capangas do Savoy estejam atrás da sua garota.

- O que?!

- É! Parece que ele soube do seu caso com ela e quer raptá-la, não temos tempo p’ra discussão, você tem que achá-la!

- Merda!

Corri para pegar minha moto, enquanto David ficou no prédio, mexendo no celular. Em questão de segundos já estava ligando a chave e apertando o acelerador. Estava chegando na estrada mais próxima quando David me ligou de novo.

- Edgar, eu falei com meus contatos. Um carro azul de placa MHI-2272 foi roubado hoje, deve ter sido sua namorada. Os capangas de Savoy foram vistos se dirigindo p’ra estrada a caminho de Houma, acelere antes que eles a encontrem.

- Te devo essa.

Desliguei e apertei os aceleradores.

Em menos de meia hora já estava na estrada. Meu cérebro se tornava, aos poucos, nebuloso. Uma fera não é boa em proteger alguém, mas é excelente em caçar. Os pensamentos se tornaram rasos. A fera abanou a cauda.

Não sei quanto tempo demorou, mas logo eu via os “baba-ovos” do Savoy – meia dúzia - na minha frente e, mais a frente, o carro azul. Os prédios já haviam ficado para trás e nenhuma autoridade poderia aparecer num raio de quilômetros. Era matar ou morrer.

Permiti que meu sangue fervesse aguçando meus sentidos. Saquei minha colt e dei o primeiro tiro: Em cheio no pneu traseiro de um dos capangas. A moto cambaleou sem controle, esbarrou em outra e os dois capangas capotaram se embaralhando e rodopiando pela estrada, ficando para trás. Sorri.

Logo que os quatro restantes perceberam minha presença sacaram armas e se prepararam para atirar. Acelerei o máximo que pude, fiz meu sangue ferver novamente, fazendo meus músculos e minha pele se enrijecerem, me aproximei e passei por entre dois dos motoqueiros. Os capangas foram tão burros que tentaram atirar em mim no meio da manobra e atingiram um ao outro, como eu havia planejado. Mais dois perderam o controle de suas motos e rolaram pela estrada. Neófitos me divertem.

Diminui a velocidade para ganhar distância do último motoqueiro na minha frente. Ele disparou duas vezes em minha direção, mas errou de longe. Eu mirei bem nas costas do desgraçado, não sou do tipo que desperdiço munição. Cerrei meus olhos, cessei a respiração, preparei o dedo no gatilho, mas ele disparou antes, e não mirou em mim. Ele atirou no carro.

Não pude acreditar no que meus olhos viram. O maldito disparou seguidamente no carro, acertando nos pneus, nos vidros, na lataria. O carro perdeu o controle tentando frear. Senti a besta dentro de mim se arrepiar e mostrar as presas. Repeti o gesto do capanga e apertei o gatilho repetidamente, acertando ambos moto e piloto sem contar quantas vezes. Ele caiu sobre o guidão e se deixou cair da moto, já morto.

Freei bruscamente, largando meu veículo na estrada sem me importar com mais nada e corri em direção ao carro. Não dava para ver por dentro por causa dos vidros da janela completamente rachados. Fui abrir a porta e senti uma perfuração quente em meu ombro.

Olhei para trás e vi um capanga com a arma apontada. O maldito deve ter usado alguma bruxaria para ficar invisível e me fazer esquecê-lo. Logo que nos encaramos, ele apertou o gatilho mais vezes, mas eu me joguei para o lado sendo atingido uma única vez e descarreguei o que sobrava de munição da colt em cima do desgraçado. Eu cai no chão com os olhos bem abertos e a arma ainda apontada para o desgraçado. Ele caiu no chão com o corpo mole e esburacado. Me levantei, fui até o corpo imóvel e enfiei meu calcanhar na garganta do capanga, garantindo que ele não levantaria mais.

Sem perder tempo voltei para o carro e abri a porta.

- Vitor! Vitor! Fique acordado! Olha p’ra mim! Vitor!

O irmão dela havia sido baleado.

- Eu levo ele p’ro hospital! Você pega a moto do morto e me segue!

O rosto dela estava coberto de lágrimas. Peguei o rapaz nos meus braços, subi na moto e com a velocidade que cheguei na estrada, voltei para Nova Orleans.

Dane-se a Família, dane-se o Príncipe, dane-se Savoy, o garoto não podia morrer.

Fui o mais rápido possível para o hospital mais próximo da periferia e entreguei o garoto para os médicos. Alice ficou chorando horas no meu ombro.

Liguei para David e Alonso avisando de tudo que ocorrera e pedi para que eles vigiassem minhas costas naquela madrugada.

Depois de duas horas no hospital o médico falou com Alice. O estado do garoto era grave e era quase certo de que ele iria morrer:

- Por quê? – ela me perguntou em meio aos soluços.

- É difícil não ter inimigos na Família... Um dos meus resolveu pegar você.

- A gente tinha conseguido uma vaga p’ro tratamento dele em Houma, ele ia ser curado.

Quando nos tornamos vampiros, esquecemos de muitos sentimentos humanos. Mas o ódio a gente não esquece nunca. Eu fiquei olhando o garoto na cama da UTI, cheio de curativos, respirando por aparelhos. Quase ninguém nesse mundo é inocente, mas aquele garoto ainda era e a vida dele estava escorrendo pelo ralo na minha frente. Eu não tinha certeza do que o Savoy queria, mas o circo tava prestes a pegar fogo e eu tinha que estar preparado. Não era mais questão de sobrevivência, eu ia ter que atacar e estava bem decidido disso. Em meio aos meus pensamentos, eu ouvi a voz de Alice:

- Edgar...

Eu olhei para Alice. Os olhos castanhos estavam completamente vermelhos e ela ainda não havia parado de chorar. Ela segurou os soluços por um instante enquanto me encarava, controlou a respiração e ficou em silêncio me olhando, mas com algo na ponta da língua para falar.

Ela parecia ter certeza de algo, mas ainda assim com medo. Até uma semana atrás, ela não acreditava em vampiros e agora o irmão dela estava à beira da morte por causa de um de nós. Seus lábios se desgrudaram, ela respirou mais uma vez e disse a frase decisiva que iria, sem eu saber, virar o tabuleiro entre eu e Savoy:

- Salve-o.

A Família podia ser ingrata, mas sempre aumentava de forma divertida.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Atrás das Grades

Soou a sirene, hora de recolher. Cada um num ritmo vagaroso parando de fazer o que fazia e se dirigindo, sem a menor pressa, para os corredores. No começo, eu fazia careta na hora de recolher - todos faziam - mas chega uma hora que já é natural. Estar dentro da cela é tão normal para um presidiário quanto estar dentro de um escritório é para um cidadão: é onde passamos a maior parte dos nossos dias não fazendo nada.

Eu estava sentado num banco, olhando os outros jogarem bola. Minha cara era sempre a mesma, não importava se fizesse frio, calor, sol, chuva, se jogavam bola ou se espancavam alguém no meio da quadra. Alguns já me conheciam, outros haviam chegado depois da minha ultima estadia aqui. Deve ser a terceira vez que venho parar nessa jaula. Deve fazer algumas semanas que eu voltei e até que passou rápido. Não é tão ruim depois que se acostuma.

Levantei desleixado e fui arrastando os pés em direção ao portão. Os guardas só olhavam, sabiam que ninguém iria tentar nenhuma gracinha, mas sempre olhavam com cara de emburrados. Palhaços. É só meia dúzia de presos se revoltarem que metade se borra todo. Alguns dos meus “colegas” ainda mantinham a empolgação do jogo, se empurrando e se xingando. Outros pareciam imitar os guardas, fazendo bico e olhando de cima para baixo. Nada havia mudado.

Enquanto andava, entrando aos poucos na fila que se formava no caminho para o portão, minha visão começou a escurecer. Uma sombra começou a cercar as bordas dos meus olhos, como fumaça, deixando apenas dois pequenos globos visíveis no centro. Pisquei e tudo voltou ao normal – pensei que fosse sono. Continuei andando e as sombras voltaram. Devagar, mas perceptíveis, pisquei e elas se afastaram, mas não por completo. Ficou tudo negro, pisquei e um pequeno globo se abriu e logo se fechou de novo. Senti meu ombro esbarrar no portão aberto, mas já não enxergava nada. Senti minha cabeça pesar no meio da escuridão, comecei a piscar repetidamente, tentando fazer minha visão voltar, mas não funcionava. Cai de joelhos sentindo tontura, esfreguei os olhos, pisquei, pisquei, pisquei, pedi por ajuda sem ser atendido, arregalei os olhos, mas tudo era negro. Ouvi a batida grave do portão atrás de mim. Ouvíamos o portão batendo todos os dias, mas, dessa vez foi mais sonoro, pareceu até ecoar, como se tudo fosse vazio ao meu redor.

Aos poucos, minha visão foi retornando, mas ainda limitada, como se eu estivesse me acostumando a enxergar no escuro. E realmente estava.

Olhei para o portão, ainda fazendo careta para forçar os olhos, e pude observá-lo de perto. O ferro parecia enferrujado, como se estivesse abandonado a décadas. Cheguei mais perto e o fedor de ferro desgastado se tornou nítido. Havia ferrugem em toda a parte. Ele estava realmente apodrecido e não era impressão minha. Encostei minha mão no ferro e olhei para meus dedos: estavam imundos. Não era ilusão. A visão, o cheiro, o tato, era real.

Mas que diabos era aquilo tudo?

Olhei ao meu redor. Meus olhos já pareciam estar normais, limitados apenas pela escuridão do corredor. Caminhei, podendo ver apenas a silhueta do outro portão, que levava até a ala B1. Me aproximei e ele parecia estar igualmente desgastado, todo cinza e negro de ferrugem e imundice. Tive que forçá-lo para sair do lugar, fazendo um rangido estridente, longo e incômodo. Fiquei um tempo parado, na passagem, tentando enxergar algo, em vão. Bati palmas limpando a mão e entrei.

Dentro da ala B1, pude ver apenas as barras das celas e a porta para o corredor da ala, nada mais. Olhei para as paredes, para o teto, para o chão. Minha única noção de espaço eram as barras e a porta, mais nada. Andei, ficando mais ou menos no centro da ala, insistindo em tentar ver algo. Após alguns instantes, eu desisti e pus-me a andar em direção ao o portão.

Atravessei, passei por um corredor curvo, tendo que me guiar com a mão na parede. Mal vi a porta na minha frente e precisei apalpá-la para achar a maçaneta. A textura de tudo era extremamente decadente e suja. Engoli seco, segurando o nojo. Talvez, não ver era melhor do que ver o que eu estava encostando.

A ala B2 se encontrava na mesma situação. Acreditar que aquilo era real era estúpido demais e, ao mesmo tempo, negar aquelas sensações seria inútil. Até o ar que eu respirava era diferente, mais parado, pesado, escasso, mas era ar. Não podia enxergar as paredes e nem o chão, mas podia senti-los a cada passo. Não podia enxergar o teto, mas tinha noção de que havia algo acima de mim.

Caminhei, tentando olhar cada uma das celas. Tudo no mais absoluto silêncio. Alguns diriam que o lugar parecia morto, mas até morte parecia distante ali. Nem vida, nem morte. Nem pós-vida e nem não-vida. Apenas silêncio e escuridão. Mas as barras das celas, de alguma forma, me aliviavam: elas ainda existiam, diferente de todo resto. Elas me traziam a segurança de que eu ainda estava no mesmo lugar e que as coisas ainda estavam onde deveriam estar. Fiz questão de olhar na direção de todas as celas, uma por uma. Esquerda e direita, esquerda e direita, esquerda e... E nada na direita.

Eu conhecia bem aquela prisão e todas as celas pareciam estar em seus lugares, exceto a B14. Ela estava sem grades. Me aproximei, tentando enxergar o que havia de errado. Senti a parede com a mão e estiquei um pouco o pescoço para dentro do bloco vazio, onde deveria ser uma cela. Os olhos espremidos, tentando flagrar algo. E então, um movimento. Dei um passo para trás, sem entender o que havia visto. Outro movimento. Respirei fundo, tentei ignorar o suor escorrendo pelo canto do meu olho, me mantive firme. Outro movimento. Algo estava pulsando.

Então, um grito. Agudo e rasgado, cheio de dentes. Pulei para trás e cai no chão. Olhos arregalados, queixo tremendo. Uma mão com garras longas e finas se esticava, tentando agarrar algo, os olhos esbugalhados, cheios de maldade me encaravam fixos, a boca repleta de espinhos e cravos desordenados, a pele pálida, nitidamente suja, solta aos ossos, quase nenhuma carne. O bicho se esticava, arranhando o chão, rosnando e gritando bestialmente. Seja lá o que era aquilo, queria me alcançar. Mas não podia andar, estava preso. Parecia estar preso pelos pés a algo. Dane-se, eu não precisava saber mais do que já havia visto.

Aquilo foi o suficiente pare eu me desesperar. Dei um encontrão na porta que eu sabia que estava atrás de mim e subi correndo pelas escadas. Cheguei à ala B4. Tudo continuava na mais completa sombra, mas isso pouco importava naquela hora, eu precisava correr, não importava porquê, não importava para aonde.

Segui para minha direita, aonde eu sabia que teria uma porta para ala B3. Disparei em passos largos, mas apenas três, até uma garra vir do teto, em direção ao meu rosto. Meu instinto mais puro e primitivo me salvo, me fazendo girar o corpo e cair no chão, olhando para cima. Tinha outra daquela criatura no teto, presa pelo tronco. O bicho gritava enquanto empurrava o teto, tentando se soltar e me encarava, lançando uma garra em minha direção em meio aos solavancos contra o concreto em sua cintura. Eu senti meu coração esmurrando meu peito, como se quisesse sair de dentro de mim com um pontapé.

Me levantei, cambaleando, e corri. Atravessei a porta dei mais alguns passos, mas tive que parar, desorientado. Meu desespero era tanto que havia parado de prestar atenção no caminho e simplesmente não tinha mais a menor noção de onde estava. Olhei ao meu redor identifiquei algumas barras das celas, uma porta no caminho aposto da qual entrei e uma outra porta na parede oposta às celas, provavelmente para uma escada. Pensei em qual caminho seguir e este foi o meu maior erro daquele dia.

Eu não sei por quanto tempo aquele som já estava lá até eu percebê-lo, mas eu percebi. Um rosnado. Baixo, contínuo, semi-rouco. Mais do que uma ameaça, era um aviso. Aviso de que iria atacar. Me dei conta de que havia um espaço vazio entre as barras. Havia uma cela aberta. Dela, um passo depois do outro, uma figura não muito alta, fina e pálida saiu. Este não estava preso em nada, apenas mantinha os braços atrás do corpo. Eu hesitei. Ele mostrou as presas.

E avançou.

Baba e cuspe transbordaram da investida. Pulei para a esquerda, deixando o bicho passar direto. Por trás dele, pude ver seus braços presos um no outro, pelos punhos, com as mãos entrelaçadas, fixadas uma na outra. Rapidamente, ele se virou em minha direção e veio de novo.

Dessa vez, interrompi o ataque com um chute no queixo do monstro, empurrando-o para trás. Ele capotou no chão, mas logo se levantou desengonçado, mas, cheio de fúria. Correu, ainda cambaleando, para cima de mim, esquivei pela direita e passei a perna na dele, fazendo-o tropeçar novamente. Aproveitei a chance e corri em direção à escada, encontrando a parede. Tateei o concreto, mas nada de porta. Ouvi um latido molhado trás de mim e me virei para me defender.

O monstro já estava em cima de mim, alguns centímetros. Segurei sua testa e seu ombro tentando empurrá-lo, mas dessa vez, eu que fui para o chão. Tombei com força e ele veio junto. A boca chegando a menos de um palmo do meu rosto, o bafo insuportável e a força movida pelo frenesi cego. Empurrei, chutei e soquei. Minha única vantagem era o bicho não poder usar os braços, senão, teria sido meu fim ali mesmo. Depois de alguns empurrões, consegui afastá-lo o suficiente para chutá-lo, fazendo-o cair para trás. Tentei me levantar, me arrastando no chão, mas meu braço falhou e eu só pude me afastar, enquanto ele preparava outro bote.

Ainda no chão, braços tremendo descontroladamente, respiração disparada, coração me chutando por dentro, suor por todo o corpo, ele veio. Tentei chutá-lo, mas não tive força, atingindo apenas sua coxa, fazendo-o despencar em cima de mim. Empurrei seu queixo para o lado com as duas mãos, mas ele logo girou e se apoiou com os joelhos, me atacando. Fui empurrado contra a parede, ele com um joelho e um pé no chão, ganhando estabilidade, usando a força do tronco. Segurei o queixo e a testa, empurrando com o que ainda restava da minha força. Berros, empurrões, suor. Meu braço cedendo.

A cada segundo, um centímetro mais perto e o bafo abissal se aproximando. Dentes como navalhas abertos desejando fechar com meu corpo dentro. Tremedeira, calafrios, desespero. Meus braços cederam, meus olhos fecharam, meu corpo entregue.

E o mundo, aos poucos, foi clareando.

Alguns risos. A voz de um policial:

- Hei, Trevor. Caiu de maduro?

Uma mão me segurou pelo braço e me ergueu do chão.

Meus olhos ardiam, senti frio pela roupa encharcada. Aos poucos, a visão foi se acostumando. Alguns me olhavam espantados, outros apenas riam.

- Olha só p’ra esse cara. Parece que viu um fantasma. Hei! Trevor! Não diga que se borrou também.

Silêncio. Eu ainda piscava pelos olhos ardendo.

- Tsc, leva logo ele p’ra jaula, não temos tempo p’ra palhaçada.

Fui conduzido até minha cela. Confuso.

Ouvi o som da grade estalando repetidamente enquanto se fechava, finalizado pelo bater do portão de aço. Cocei o rosto, esfregando a palma da mão nos olhos e puxando as bochechas e a boca para baixo com os dedos. Tontura. A blusa estava mais seca, mas ainda incômoda.

Ser presidiário era moleza. Tudo sempre igual, sem novidades. Assaltar para viver já nem parecia arriscado.

Mas, se eu já estava acostumado com um inferno, um outro começou a surgir e eu simplesmente não estava preparado para aquilo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Deixe os Corpos Preencherem o Chão

Onze horas da noite de quarta-feira. Era pra ser uma noite tranquila, sossegada, mas uma mãe de família ligou para central e deu queixa de algum movimento estranho em uma casa abandonada, no subúrbio. Provavelmente foi algum adolescente brincando de visitar a casa mal assombrada, mas como esta cidade está cada vez mais violenta, uma equipe de quatro homens foi enviada para averiguar. Seja lá o que estiver naquela casa, vai levar um baita susto quando chegarmos.

- Não acredito que me interromperam bem no meio da minha partida de poker. E ainda mais pra atender um trote. Aqueles cretinos... – Resmungou o sargento.

- Já que você não vai perder seu dinheiro jogando, perca apostando. Eu aposto que é um drogado. – Falou Jimmy, um idiota que havia acabado de se formar na academia e já chegou podre de corrupção, doido para se misturar nas panelinhas de babacas da policia.

- Aposto que a casa vai estar vazia. – Matheus era o que menos fedia daqueles três. Na verdade, eu ainda não o conhecia direito, mas não dá pra esperar muita coisa boa naquela divisão da cidade.

- Ok, então. Se for um trote, cada uma das menininhas vai por vinte pilas no meu bolso. – Parecia que o sargento só falava através de resmungos.

- E você, Cristiano? Aposta que é o que? – Sabe aquelas pessoas parecem que nunca falam sério? Jimmy era desse tipo.

- Aposto que foi um lobisomem trocando de pele e que se dane as suas apostas. – Respondi, mantendo a atenção nas ruas.

- Vai ter que me pagar as vinte pilas mesmo assim. Chegamos. – era ridículo ver um barrigudo, bigodudo como aquele sargento bancando o manda-chuva, mas eu tinha que obedecer às ordens da central e só queria voltar para o meu posto pra me ver livre daqueles caras.

Estacionamos a viatura em frente a tal casa. Toda cercada por um muro de pouco mais de dois metros de altura, que não era nenhum desafio para ninguém pular. Não dava para ver muita coisa do lado de dentro, além do topo de algumas árvores. A rua era estreita, sem asfalto, só de casas de dois ou três andares, completamente deserta e sem iluminação.

- Matheus fica cuidando da viatura, vocês dois vem comigo. – A voz do sargento já era meio rasgada pelo excesso de fumo. Um dos caras mais acabados que eu conhecia.

O portão principal estava entreaberto, sem nenhuma fechadura ou cadeado. Nos entreolhamos, em silêncio, e entramos. Do lado de dentro do terreno, a casa era de tamanho médio, dois andares, uma varanda no andar de cima, à direita havia um galinheiro abandonado colado com o que parecia ser um depósito de equipamentos de jardinagem ou qualquer coisa do tipo. Nos fundos, a casa do caseiro, só um andar e uma escada para uma laje, tudo muito velho e mal cuidado, parecia abandonada há, pelo menos, dez anos.

- Cristiano fica aqui do lado de fora, não deixe nada fugir pelos muros. Eu e o Jimmy vamos entrar.

- Afirmativo, Senhor. – Respondi com desleixo. Eu tentava encontrar algum movimento por dentro das janelas, mas a falta de iluminação e o excesso de poeira em todo canto dificultava muito. Parecia realmente que não havia nada ali.

O sargento e o garoto entraram pela porta principal da casa, enquanto eu fiquei no jardim da frente, observando. Olhava para as janelas do andar de cima, do andar de baixo, tentava observar algo na casa do caseiro, e nada. Após alguns instantes, um cheiro estranho começou a me incomodar. Olhei para a terra ao meu redor, mas não parecia haver nada errado ali. Olhei para o topo das árvores e nada também. Olhei para o galinheiro. Dentro da casa, os dois pareciam ainda estar investigando o andar de baixo. Caminhei lentamente, tentando seguir o cheiro, sem desprender minha atenção das janelas. Aproximei-me devagar e o cheiro pareceu ficar mais forte. A três metros de distância, o cheiro já me provocava caretas involuntárias. Olhei bem para a casa por um instante e então, olhei para o galinheiro. Não dava para ver quase nada, além de algumas moscas rondando o lugar. Apontei minha lanterna e não acreditei no que vi.

Por dentro, o galinheiro era todo rubro, tanto nas paredes quanto na palha do chão. Era difícil contar quantos corpos tinham lá dentro, de tão brutal que eles haviam sido distorcidos. Braços e pernas se contorciam em nós, deixando apenas as cabeças penduradas, pesando para baixo. Fraturas se exibiam em cada parte do corpo das vítimas, todas penduradas no teto. Liguei para o rádio da viatura.

- Matheus, na escuta? – Minha voz tremia e meus olhos tentavam flagrar algo pelas janelas da casa.

- Na escuta, Cristiano, o que houve?

- Encontrei corpos no galinheiro do terreno, Jimmy e o sargento estão em perigo dentro daquela casa, temos um psicopata na cena. Tranque a viatura e se prepare para intervir. Repito, temos um psicopata na cena, prepare-se para intervir a qualquer momento.

Mandar um rádio para o sargento seria denunciar a posição deles para o assassino, minha única opção era entrar. Puxei minha pistola e corri pela porta da frente. Uma pequena sala, com duas portas para quartos, uma passagem para a cozinha e uma escada para o andar de cima. Eles já haviam subido e o assassino deveria estar lá também. Subi a escada correndo. No segundo andar, outra pequena sala com uma porta para a varanda e três outras portas. Jimmy estava de prontidão no meio da sala.

- Ei, Cristiano, o sargento mandou você ficar do lado de fora, o que está fazendo aqui em cim... – As palavras do garoto foram interrompidas pelo corpo do sargento voando por uma das portas a fora, batendo de forma brusca contra a parede, fazendo um estouro espantoso. Eu e Jimmy arregalamos os olhos e apontamos nossas armas para a passagem aberta. Esperávamos ver algo ruim sair dali, mas quando saiu, era ainda pior.

O cara devia ter mais de dois metros de altura, todo robusto, careca, com a pele em uma coloração bizarramente cinza. Ele saiu pela porta com tranqüilidade, como se não sofresse nenhuma ameaça e olhou para cada um de nós.

- Mãos pro alto! – gritou Jimmy. Na época, eu não sabia como aquilo foi ridículo.

O cara olhou para o Jimmy e começou a andar na direção dele, sem a menor pressa. O garoto tremia todo, de boca aberta com a figura em sua frente. Quando os dois se encontravam a uns três passos de distância, Jimmy apertou o gatilho... E recebeu um soco avassalador na cara, como resposta. O garoto caiu para trás, quebrando uma estante de vidro com as costas e desmontou no chão com o rosto amassado e coberto de sangue. O homem parecia ter a força de um gorila.

Não pude acreditar no que meus olhos estavam vendo. O sujeito tinha que ser abatido. Mirei em suas costas e disparei meu primeiro tiro da noite. O corpo dele mal reagiu ao impacto. Ele começou a se virar em minha direção. Outro tiro, dessa vez no ombro. Outro tiro, na barriga. Outro tiro, no tórax. E ele continuava de pé. Veio caminhando em minha direção, me olhou com a seriedade de quem não se diverte matando suas vítimas e fechou os dois punhos se preparando para me derrubar. Mais um tiro disparado e mais um passo do homem. Outro tiro disparado e ele estava na metade do caminho. Disparei de novo e seu punho já estava preparado pra me nocautear. O soco veio e eu me joguei em cambalhota para trás dele e liguei o rádio.

- Matheus! Estamos sob ataque, precisamos de apoio! Repito, precisamos de apoio!

Enquanto falava, o pé do assassino veio em minha direção. Me joguei em cambalhota novamente. Terminei o movimento já disparando, errando o primeiro tiro, mas não o segundo e nem o terceiro. Comecei a acreditar que estava enfrentando algum tipo de imortal - eu já teria derrubado um boi com tantos tiros e o maldito continuava de pé. Só me restava uma opção: mirar na cabeça.

O assassino tirou o seu pé do buraco que havia criado na parede num solavanco e se virou na minha direção. Respirei fundo, mirei na testa, mas não fui eu a disparar. Jimmy, no chão, mal tinha forças para levantar a pistola, provavelmente com a visão quase incapacitada apertou seu gatilho sem contar quantas balas estava disparando, nem hesitar. Atingiu a parede, atingiu o teto, mas também atingiu o maldito. Ele olhou feio para o Jimmy, parecia que não gostava de dar mais de um golpe para matar suas vítimas, mas não houve dúvidas, o segundo terminou o serviço. Um novo buraco foi aberto na parede do segundo andar, dessa vez, com a cabeça do Jimmy sendo usada para abrir caminho. Por reflexo e medo, voltei a disparar minha arma, sem saber onde mirar e sem acreditar que o monstro ainda estava vivo.

Era minha vez de ser abatido. Parei de disparar minha arma e me lembrei de mirar na cabeça. Não me sobrava muita munição, então, eu não podia errar. O olhar do psicopata parecia me desafiar. Seu punho se fechou e uma voz gritou:

- Parado! – Não sei se Matheus pensou em não atirar, mas quando deu de olhos no pandemônio que havia se tornado aquela sala, apertou o gatilho sem pensar duas vezes.

Para o nosso azar, o assassino havia se cansado da brincadeira e investiu para cima de Matheus com um soco. Meu colega se jogou para o lado, deixando a parede para ser aberta pelo punho do psicopata. Ele se levantou do meu lado:

- O que é isso?

- Eu não sei, mas ele não cai.

Lentamente, começamos a andar cada um para um lado, para nos afastar e cercar o inimigo. Ele olhou para cada um de nós, escolhendo a vítima, pensou por um instante e veio para cima de mim.

Matheus voltou a apertar o gatilho impiedosamente. Disparei uma vez, mirando a testa do maldito, errei, disparei mais uma vez, quase acertei, apertei o gatilho pela terceira vez e ouvi o clic seco da arma sem munição.

Um soco cruzado veio na direção da minha cabeça, me esquivei, outro veio na mesma direção e pulei pro lado, pensei em procurar algo para me defender, mas a enorme mão do assassino segurou meu rosto e me levantou do chão. Comigo nas mãos, o psicopata me pôs entre ele e o Matheus, me usando de escudo. Um tiro pegou no meu ombro, antes que meu colega tivesse o reflexo de parar de atirar. Era evidente o porquê que aquele monstro agia como se fosse invencível: ele era. Senti a pressão no meu crânio se agravar e uma dor estonteante assolar meu cérebro, até que ouvimos:

- Filho da puta! – O sargento não estava morto.

Atirou incontáveis vezes nas costas do psicopata, o incomodando e fazendo-o me soltar. Ele se debateu em meio aos tiros, grunhiu, segurou a cabeça como quem sente dor e urrou em fúria. A boa notícia era que ele sentia dor.

Em meio aos gritos, o monstro foi na direção do sargento e calou seus disparos com o pé afundando o chão com o tórax da vitima, fazendo-o esbugalhar os olhos e vomitar sangue em uma golfada densa. Matheus voltou a atirar, andando para o lado, tentando se afastar do monstro. Corri na direção do corpo de Jimmy, peguei sua pistola e mirei. Não sabia quanta munição ainda tinha naquela arma, então, não podia desperdiçar. O braço de Matheus tremia, seus disparos não eram mais tão precisos, muitos pegavam nas paredes e com um único murro no peito, meu ultimo aliado vivo capotou escada a baixo. A expressão séria e fria do monstro agora era pura raiva e rugidos.

Ele me olhou, eu mirei, disparei e acertei em cheio, no meio da testa do desgraçado.

Ele não caiu.

Em um passo, o assassino já estava em cima de mim, com os dois braços juntos sobre a cabeça, descendo um murro. Pulei pela direita, e o armário que ficou no caminho se desfez com o golpe. Tentei disparar de novo e descobri que estava sem munição. Ele girou o braço em um soco na minha mão, me desarmando, seguido por outro soco. No susto, tropecei no chão, me jogando para trás, tentando desviar. O maldito levantou o pé, eu girei e ele afundou o chão. Tentei me levantar, mas a mão dele me pegou pelo colete, me erguendo no ar e me socando contra o solo com uma força grotesca. Ele me socou contra o chão mais uma vez e me pegou pelo pescoço, enquanto olhava bem nos meus olhos. O psicopata havia conhecido um desafio e queria olhar bem nos olhos da sua última vítima da noite. Meu pescoço começou a ser esmagado, enquanto eu chutava seu abdômen e dava joelhadas em seu braço, mas ele era duro feito uma pedra. Olhei ao meu redor, procurando algo e vi a pistola do sargento não muito longe. Me estiquei, mas só as pontas dos meus dedos alcançaram a arma. O maldito apertou mais forte e eu senti a circulação na minha cabeça se dificultando. Puxei a arma com os dedos, até conseguir apanhá-la com a mão. Peguei a pistola, mirei no pescoço do assassino e disparei.

E ele caiu.

Um último grunhido rouco, de quem tenta puxar o ar pelos pulmões com dificuldade, os olhos mirando o vazio e a queda de um corpo inanimado no chão. Respirei. Respirei fundo. Olhei para o teto, enquanto respirava, sem acreditar que estava vivo

Na verdade, eu não mirei no pescoço, eu só atirei no primeiro lugar que a minha mão foi. O que importava era que, finalmente, o monstro caiu.

E eu estava vivo.